sexta-feira, agosto 29, 2008

Anamnese dos Trabalhadores Expostos ao Ruído


Desde sempre, a melhor maneira de conhecer um paciente foi a conjunção da anamnese com o exame clínico. Fazemos esta ressalva porque os exames complementares têm freqüentemente sido utilizados, mais recentemente, com a finalidade de determinar a necessidade de avaliar, ou não, uma pessoa. É uma total inversão de valores.

Reconhecemos que a prevenção é a melhor ferramenta disponível em qualquer campo da medicina, sempre utilizada para evitar a instalação ou progressão de qualquer doença, seja ela ocupacional ou não, vamos nos ater, doravante, à anamnese como instrumento inicial e continuado da avaliação de trabalhadores expostos ao ruído. Ao médico são oferecidas diversas oportunidades para isto, representadas no campo da saúde do trabalhador pelos exames médicos ocupacionais.

Devemos lembrar que, para obtermos uma anamnese confiável, é indispensável a colaboração do paciente, a qual poderá variar de acordo com o momento em que está inserida a avaliação. No exame admissional, movido pelo desejo de conseguir o emprego, poderá o paciente omitir, ou mesmo distorcer, informações que, no seu entendimento, possam prejudicá-lo em seu objetivo. No exame demissional, especialmente quando há litígio, as informações poderão ser igualmente distorcidas, agora no sentido de que todos os sinais e os sintomas relatados foram decorrentes de más condições de trabalho, uma vez que seu objetivo pode ser o da permanência no emprego (estabilidade por doença) ou a proposição de uma futura ação judicial contra a empresa. Nem o exame demissional nem a perícia em juízo são o melhor momento para a realização da anamnese, mas, eventualmente, são nestas ocasiões que se tem o primeiro contato com o paciente, motivo pelo qual o médico deve dedicar-se integralmente a conseguir o maior número de dados objetivos possíveis, uma vez que os componentes subjetivos poderão não ser confiáveis.

Assim sendo, o melhor momento para estabelecer uma relação médico-paciente mais crível (sempre há uma margem de erro) é o exame Periódico. Nesta ocasião, por não estarem presentes os motivos de distorção de comportamento anteriormente comentados, e estando o trabalhador convencido de que o médico tem por finalidade a preservação e a promoção de sua saúde, tenderá a responder corretamente os questionamentos apresentados e a colaborar com o exame.

Vale ressaltar que uma anamnese bem feita implica dispêndio de tempo e empenho por parte do médico examinador. Depende também de seu conhecimento da patologia ocupacional e das doenças que, embora não relacionadas ao trabalho, possam desencadear, agravar ou mimetizar uma perda auditiva.

O prontuário do paciente é o local onde devem ficar registradas todas as anotações médicas, da maneira mais detalhada possível, visto que o mesmo terá como finalidade:

1. O seguimento, ao longo do tempo, da evolução de doenças diagnosticadas e a inclusão de novos diagnósticos. Este seguimento poderá ser feito pelo próprio médico que registrou as informações iniciais, ou por qualquer outro que venha a atender o mesmo paciente, no futuro.

2. A defesa do médico em possíveis ações judiciais por imperícia, imprudência ou negligência: ao registrar suas observações, investigações e atitudes, adotadas no sentido de diagnosticar, tratar e acompanhar a saúde do paciente, estará atuando em sua defesa, comprovando que enviou todos os esforços possíveis na sua atividade profissional, controlando os fatores ao seu alcance.

3. Configurar a participação da empresa: não está no nível decisório do médico a adoção de atitudes que impliquem alteração de rotinas de produção e/ou investimentos financeiros. Cabe ao médico indicar a necessidade de tais modificações, o que deve ser consignado por escrito, com o recebimento de cópia protocolada, visando à posterior comprovação de que cumpriu sua obrigação.



2. Anamnese Ocupacional

O histórico ocupacional do paciente traz as informações iniciais indispensáveis à condução do exame. Deve-se registrar uma descrição sucinta e ordenada cronologicamente de todas as atividades profissionais desempenhadas desde a infância, relacionando o tipo de atividade, os agentes nocivos a que estava exposto, o nível de ruído, a época das medidas coletivas adotadas, o uso de protetores individuais, os acidentes ocorridos, as doenças ocupacionais contraídas. A posterior comparação dos dados obtidos nessa coleta com a evolução dos limiares auditivos do paciente muitas vezes elucida a causa da perda auditiva, diferencia o ambiente mais lesivo do ambiente mais saudável, ressalta a eficácia de medidas preventivas adotadas e a responsabilidade de diferentes empregadores. A anamnese ocupacional não precisa necessariamente ser realizada pelo médico avaliador em sua totalidade, dados mais administrativos já podem vir relatados em uma entrevista pré-via realizada pela enfermagem, segurança ou mesmo pelo departamento pessoal da instituição empregadora, mas cabe ao médico repassar as informações registradas e acrescentar suas observações de cunho clínico.



3. Exposição em atividades não-profissionais

A exposição a fontes de ruído não relacionadas ao trabalho pode, às vezes, ser a causa principal de uma perda auditiva detectada, e por isso necessita ser exaustivamente pesquisada. A exposição pode ser atual, determinando a progressão de uma perda auditiva, ou pode ter ocorrido no passado, até na infância, e explicar achados audiométricos que não se justificam pela exposição profissional do indivíduo. São comuns entre os trabalhadores a utilização de armas de fogo, seja na caça, seja por prática de tiro ao alvo. Caso não incluído na anamnese ocupacional, o histórico do serviço militar pode também ser pesquisado aqui. Outras fontes bastante comuns de exposição ao ruído são as relacionadas à música.

Instrumentos musicais, principalmente os amplificadores, aparelhos de som com auto-falantes ou fones de ouvido, o sistema de som do carro, shows e festas freqüentes, cultos religiosos, academias de ginástica, todos podem ser responsáveis por exposição excessiva. Pesquisar também oficinas caseiras, com serras, esmeris, lixadeiras, compressores; cortadores de grama; atividades de lazer que envolvam motores de barcos, carros, motocicletas, aeromodelos; a condução de veículos com alto nível de ruído, principalmente com motores a diesel. Encerrar esta parte da entrevista perguntando ao trabalhador se algum tipo de exposição fora de seu trabalho não foi mencionada.



4. Sintomas relacionados com a audição

A anamnese ocupacional de um indivíduo suspeito de ser portador de deficiência auditiva adquirida no trabalho, tal qual como qualquer outra realizada em consultório de otorrinolaringologista, valoriza, especialmente, os sintomas diretamente relacionados com a audição.

Assim, é necessário conhecer detalhes com respeito a sua perda auditiva, valorizando características tais como intensidade, lateralidade, dificuldade no reconhecimento da palavra falada, especificando condições (com ou sem ruído de fundo, vozes graves ou agudas, uso de telefone etc.).

Zumbidos: os mais freqüentes dos sintomas, desconsiderando-se a própria perda auditiva, devem ser igualmente pesquisados. Necessitamos saber sobre lateralização, intensidade, regularidade, se prejudicam a concentração durante o trabalho, o sono etc.

Algiacusia: referência feita a uma sensação de dor frente a presença de determinados tipos de ruído de alta intensidade, é uma indicação que, ocasionalmente, poderemos encontrar.

História pregressa de otalgias, com ou sem otorréias, facilita uma avaliação clínica da orelha média e, também, não deve ser esquecida.

A suspeita da presença de recrutamento, fenômeno que por vezes acompanha disacusias neuro-sensoriais, nas quais um discreto aumento de intensidade de um som resulta numa desproporcional sensação de aumento da intensidade deste som, deve ser avaliada com cuidado. Considerado indicativo de lesão coclear, o recrutamento pode nos fornecer pistas importantes para estabelecermos um topodiagnóstico da lesão.

Não pode ser esquecida a presença ou ausência de vertigens, estabelecidas que são como tonturas de aspecto rotatório, e que alertam para a possibilidade de algum tipo de problema vestibular, eventualmente, como conseqüência de exposição a elevados níveis de pressão sonora.



5. Sintomas não-auditivos relacionados com a exposição

Capaz de gerar grandes controversas entre inúmeros autores, a presença dos sintomas não auditivos referidos pelos pacientes expostos ao ruído, permanecem fazendo parte da anamnese ocupacional, quanto mais não seja, para demarcar com maior vigor o quanto de adversidade este problema gera para o ser humano.

De uma forma bastante didática, podemos dividi-los em seis itens: da comunicação, do sono, neurológicos, vestibulares, digestivos e comportamentais.

Comunicação: uma referência que temos ouvido com certa assiduidade é a do isolamento social do indivíduo durante suas atividades.

Sono: diversas perturbações do sono, incluindo insônias importantes e suas conseqüências, tais como irritabilidade, cansaço e dificuldade de concentração, são queixas que não podem ser classificadas como raras, na anamnese de um paciente submetido a níveis críticos de ruído.

Neurológicas: algumas manifestações aparecem, ocasionalmente, nestas histórias. Elas vão de tremores nas mãos, dilatação das pupilas e alterações na motilidade dos olhos, até alterações na percepção de cores.

Vestibulares: embora em nossa clínica não sejam comuns, alguns autores relatam variados quadros que podem manifestar-se como dificuldade de equilíbrio e na marcha, até a presença de nistagmos e desmaios.

Digestivos: enjôos, vômitos, perda do apetite, gastrites e úlceras também fazem parte da imensa gama de alterações descritas por diversos autores.

Comportamentais: existem relatos considerando como sintomas desta enfermidade as mudanças na conduto e no humor, a falta de atenção e de concentração, a redução da potência sexual, a depressão e o estresse.



6. Antecedentes mórbidos

Bastante variada também é a relação dos antecedentes que devem ser pesquisados para obter-se um estudo completo sobre o estado atual da moléstia.

Torna-se importante informar-se sobre doenças ou síndromes congênitas, caxumba, enfermidades auto-imunes, uso de medicamentos ototóxicos, agentes químicos, doenças na gravidez, prematuridade e/ou parto complicado, história familiar de surdez, traumatismo cranioencefálico, rádio ou quimioterapia, tabagismo, hipertensão arterial, diabete, hiperlipidemia e hiper ou hipotireiodismo, insuficiência renal e sífilis.



7. Questionário de auto-avaliação

Um novo conceito que sugerimos integrar ao processo de anamnese e já proposto pelo Comitê Nacional de Ruído e Conservação Auditiva é o preenchimento de um questionário de auto-avaliação.

O paciente receberia, antes de submeter-se à bateria de testes que fariam parte do relatório otorrinolaringológico, um documento para preencher em casa. Embora ainda com pequena experiência nesta área, oferecemos um texto com 20 questões, baseadas nos trabalhos de Hétu.

Recomendando que o mesmo seja preenchido com auxílio da família (esposa, filhos, pais), que podem ter impressões um tanto diferentes das que tem o entrevistado. O texto oferece questões simples que nos dão uma idéia da compreensão da palavra, da adição de tons não verbais, do handicap e da incapacidade auditiva.

As perguntas são de fácil compreensão (ex: Percebe o barulho da porta que se abre quando você está dentro da sala, mas de costas para ela?) e as respostas invariavelmente, são as mesmas (nunca, às vezes, freqüentemente ou sempre).

Conquanto seu valor, como base documental, possa ser discutível, acreditamos que se trata de uma manobra capaz de fornecer importantes subsídios e servir como inestimável auxílio na elaboração do diagnóstico.



8. Impressões do examinador

Acreditamos que, quando um otorrinolaringologista realiza a anamnese por solicitação do serviço médico da empresa, especialmente quando fazem-se necessários uma avaliação mais profunda e um relatório completo do caso, o especialista deveria colocar suas impressões sobre o texto obtido, atribuindo determinados valores a alguns quesitos básicos que serviriam de orientação ao médico do trabalho.

Questões relacionadas à ética e à segurança tornam, de certa forma, polêmica esta afirmativa. O encaminhamento destes quesitos, juntamente com o restante do documento, pode transformar-se numa fonte de dissabores para o otorrinolaringologista.

De qualquer forma, antes de concluir nossa anamnese, por orientação do colega Everardo A. da Costa, respondemos, podendo ocasionalmente utilizar, os quesitos seguintes:

1. Fez leitura orofacial?

2. Pediu para repetir?

3. Usou apoios auditivos? (Inclinou-se, aproximou-se, manteve a mão em concha etc.)

4. Teve dificuldades para entender e para responder durante a entrevista?

5. Apresentou respostas prontas e, aparentemente, ensaiadas?

6. Exibiu alterações na qualidade vocal ou de padrões articulatórios?

7. Suas informações foram consideradas consistentes?



9. Referências bibliográficas



1. BRASIL. Portaria n° 24, de 29/12/1994 - NR-7 - Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional. (D.O.U. 30/12/1994).



2. COMITÊ NACIONAL DE RUÍDO E CONSERVAÇÃO AUDITIVO. Boletim n° 4 - Recomendações para avaliação dos prejuízos ocasionados pela perda auditiva induzida pelo ruído. In PAIR - Perda Auditiva Induzida pelo Ruído, Nudelmann et all. Ed. Bagaggem Comunicação Ltda, Porto Alegre, 1997.



3. HÉTU, R.; LALONDE, M.; GETTY, L. Psycosocial disadvantages associated with occupational hearing loss as experienced in the family. Audiology. 26: 141-152, 1987.

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