domingo, julho 26, 2009

Ética, Cultura e Organização

A humanidade está vivenciando hoje em dia aquilo que John Naisbitt chamou de “paradoxo global”. Do ponto de vista tecnológico, caminhamos para o que MacLuhan denominou “aldeia global”. Através do progresso tecnológico, as distâncias entre os povos foram drasticamente encurtadas, as comunicações com qualquer parte do mundo tornaram-se instantâneas (“on-line”), ao mesmo tempo que o crescimento populacional explodiu a nível mundial. Contrariando os prognósticos mais otimistas, a tão decantada libertação do homem que a ciência do século passado anunciou, em decorrência do progresso técnico-ciêntífico, não aconteceu. Pelo contrário, devido a uma proximidade indesejável, acirraram-se os conflitos entre os povos; o alto poder destrutivo das armas transformou as guerras em genocídios; cresceu assustadoramente a poluição da terra, dos mares e da atmosfera do planeta, enquanto os recursos energéticos vão se exaurindo. Os homens parecem agora muito mais próximos do suicídio coletivo do que de uma libertação. O que saiu errado?, perguntamo-nos.
Uma das respostas possíveis pode vir da própria ciência. Pesquisas interdisciplinares, envolvendo neurofisiologia e ciências comportamentais, levaram à formulação da teoria dos hemisférios cerebrais. Segundo ela, o nosso cérebro é constituído por dois hemisférios, esquerdo e direito, responsáveis por funções, ao mesmo tempo, opostas e complementares. O hemisfério esquerdo responde pelas nossas funções verbais e de cálculo, o nosso lado lógico e objetivo. O hemisfério direito atende a nossas percepções globais e trabalha com sentimentos e intuições, o nosso lado psicológico e subjetivo. O uso equilibrado dos dois hemisférios leva a um desenvolvimento harmonioso e saudável do ser humano; o uso desequilibrado conduz a patologias, tanto a nível individual quanto social.
Há cerca de quatrocentos anos, começou a desenvolver-se no Ocidente um novo modo de ver o mundo, o paradigma cartesiano, que privilegiou as funções do nosso hemisfério esquerdo em detrimento das funções do nosso hemisfério direito. Se por um lado propiciou o progresso científico, por outro deixou-nos carentes de uma verdadeira evolução psicológica e, por tabela, espiritual. É verdade que as ciências da alma, a partir de Freud, redescobrem o inconsciente e começam a produzir o antídoto necessário ao restabelecimento do equilíbrio da mente humana. Ainda parecem contaminadas por métodos analíticos cartesianos que racionalizam os nossos sentimentos mais autênticos. De qualquer forma, começa a existir uma preocupação holística de levar em consideração o ser humano em sua inteireza.
Nessa tarefa, as ciências do comportamento não estão sozinhas. A física quântica, quebrando as pretensões da física clássica de um enfoque puramente objetivo do fenômeno, recolocou em novas bases a importância da interação sujeito/objeto para a sua completa compreensão. Todas essas iniciativas apontam para o restabelecimento do uso equilibrado de nossas funções cerebrais. Uma conseqüência importante dessa nova abordagem é que ela quebra a tradicional estanqueidade entre ciência, filosofia, arte e espiritualidade, permitindo o desenvolvimento de um conhecimento unificado, um saber além de qualquer fronteira traçada pela mente cartesiana.
A humanidade dispõe hoje de toda a tecnologia necessária para a erradicação da fome e da miséria e para a despoluição completa do planeta, num horizonte de poucos anos. Os vultuosos recursos para tal poderiam ser facilmente obtidos com a redução drástica de gastos com armamento em todo o mundo, que excedem em muitas vezes o orçamento para aquelas tarefas de salvação da humanidade. Basta vontade política para fazê-lo. Mas para criar tais condições políticas, temos de trabalhar as consciências, procurando promover um novo paradigma a nível mundial. Ou uma nova ética, já que a nossa maneira de ver condiciona a nossa maneira de ser.
A ênfase exagerada no objeto às expensas do sujeito, incentivada pelo paradigma cartesiano, é que colocou as expectativas de solução dos problemas do homem no mundo exterior, nas soluções “de fora para dentro”. O materialismo é só uma decorrência lógica deste paradigma: de um lado, o capitalismo, a sociedade de consumo e os símbolos de status; de outro, as reações do tipo marxista que se opõem ao capitalismo, no próprio nível materialista. O marxismo é filho legítimo do capitalismo. Vê na posse dos meios de produção pela classe operária a solução dos problemas do homem. Mas ainda é uma abordagem “de fora para dentro”. Eric Fromm chamou esse paradigma de “civilização do ter”, em oposição à “civilização do ser”, que preconiza soluções “de dentro para fora”. Isto é, temos de começar pelos indivíduos, por cada um de nós. Mas não se trata de “individualismo”, já que o indivíduo aqui não é a meta, mas o ponto de partida.
Stephen Covey, no seu livro “Os Sete Hábitos das Pessoas Muito Eficazes”, batizou essas duas abordagens de “ética da personalidade” e “ética do caráter”, respectivamente. A primeira, se é que pode ser chamada de ética, valoriza o status social, o “vencer na vida”, o “ficar rico” etc. Enfatiza o uso de técnicas manipulativas do tipo “Como fazer amigos e influenciar pessoas”. No Brasil ficou mais conhecida como “Lei de Gerson”. Segundo Covey, ganhou grande impulso no mundo depois da primeira guerra mundial. A segunda, enfatiza valores mais autênticos e permanentes, tais como: integridade, humildade, fidelidade, persistência, coragem, justiça, paciência, diligência, modestia e, a regra de ouro, “não fazer aos outros o que não quiser que os outros lhe façam”. Essas duas éticas sempre se confrontaram ao longo da história. Só que, nesse século, parece ter havido uma predominância esmagadora da primeira sobre a segunda.
O entrechoque dessas duas éticas pervaga toda a nossa vida familiar, profissional, política e religiosa. E, como não poderia deixar de ser, afeta também empreendimentos e organizações. No dizer de Peter Drucker, “o caráter e a integridade, por si só, nada realizam. Mas sua ausência aniquila tudo o mais”. Felizmente, parece existir hoje forte reação em todo o mundo em favor da ética do caráter, um basta à corrupção nos governos e nos negócios, uma preocupação generalizada com a ética. Muitas empresas mantêm hoje em seus quadros diretores ou assessores de ética, um enfoque ainda muito cartesiano, já que a ética não pode ser mais uma especialidade. A ética deve, ao contrário, permear a organização de alto a baixo, assim como as pessoas que a compõem, da cabeça aos pés. De qualquer forma, é um bom começo ou, pelo menos, já denota uma preocupação maior no trato da questão. Diz um artigo da revista “Industry Week”, de abril de 92, citado por Naisbitt:
Muitas organizações acreditam que não existe correlação entre integridade e desempenho financeiro. Elas estão enganadas. A integridade e desempenho não são extremos de um contínuo. Quando as pessoas trabalham para uma organização que acreditam ser justa, onde todos estão dispostos a dar de si para a realização das tarefas, onde as tradições de fidelidade e cuidado são marcantes, as pessoas trabalham em um nível mais elevado. Os valores a seu redor passam a fazer parte delas e elas vêem o cliente como alguém a quem devem o melhor produto ou serviço possível.
A ética do caráter está intimamente ligada à fé na natureza humana, no potencial criativo do ser humano. Anos atrás, quando fazia um curso no Japão, escutei de um dos instrutores, encarregado de familiarizar-nos com a cultura do país, que o japonês tinha “fé na natureza humana”. Na ocasião tomei a afirmação como mera retórica. Mal sabia eu que, tempos depois, teria a oportunidade de constatar a sua veracidade. Depois de mais de vinte anos envolvido com a gerência de obras, transferi-me para o treinamento gerencial da empresa em que trabalhava. Lá pude entrar em contato com a literatura sobre o chamado “milagre japonês”. Coincidentemente, entrava em contato com o Movimento Zen, em Belo Horizonte, quando pude participar de meditações, sob a direção do monge Ryotan Tokuda, e conhecer a arte e a literatura do Zen.
Na época, havia várias tentativas de explicar o “milagre japonês”. Uma delas, a da “cultura do arroz”, dizia que os japoneses estavam acostumados a trabalhar em equipe porque, na cultura do arroz, é preciso o concurso de várias famílias por causa da pouca terra, do sistema de irrigação etc. Outra, a dos “equipamentos novos”, explicava que a indústria japonesa, arrasada pelos bombardeios americanos durante a guerra, teve de recomeçar do zero, adquirindo equipamentos de nova geração depois da guerra. Este “gap” tecnológico, dizia-se, permitiu aos japoneses produzir mais barato do que os países ocidentais com seus parques industriais obsoletos. Outra ainda, que o sucesso japonês era resultado de o Japão não ter de sustentar um exército, desfeito em decorrência da rendição. E assim por diante.
Nenhuma dessas explicações satisfizeram-me. Tratava-se mais de efeitos do que de causa efetiva. Esta permanecia oculta aos menos avisados. A explicação que encontrei passa pela “Teoria Z” de William Ouchi e pelo Zen. Ouchi dizia que, devido a uma tradição que remonta aos samurais, o japonês tem grande necessidade de afiliação, de se sentir parte de algo maior, o grupo social, a empresa etc e baixa necessidade de realização pessoal. O americano, ao contrário, tem grande necessidade de realização pessoal e baixa necessidade de afiliação. Assim, a complexidade do mundo industrial encontrou o Japão mais bem preparado para o trabalho de equipe do que o ocidental, este mais individualista, culturalmente falando.
Mas por que o japonês ficou assim e o ocidental assado? No Zen-budismo, todo homem é visto como um Buda (que quer dizer “iluminado”). Ele é um iluminado só que, via de regra, ele não o sabe. A “iluminação” consiste exatamente em descobrir o que sempre fomos: iluminados. Na tradição judaico-cristã o homem é visto como um pecador. Entregue à própria sorte, ele tende para o mal. Para redimi-lo dessa maldição, Deus é obrigado a intervir em Sua própria obra e até mesmo morrer na cruz para salvá-lo, já que por conta própria o homem jamais poderia fazê-lo.
As conseqüências práticas desses dois paradigmas é óbvia: o japonês tende a apostar no outro, a ter “fé na natureza humana”, ao passo que o ocidental tende a desconfiar do próximo e ser mais individualista (Você confiaria num “pecador”?). Nesse processo, o oriental é mais psicológico e subjetivo, usa mais o hemisfério direito; o ocidental, mais racional e objetivo, faz maior uso do hemisfério esquerdo. As grandes invenções do mundo moderno tiveram origem no Ocidente e, enquanto dependeu só de talentos individuais, foi assim. Mas agora que a interdependência no mundo é cada vez maior, o trabalho em equipe é cada vez mais importante. No Ocidente, o individualismo e o uso do hemisfério esquerdo deram origem à organização burocrática com todos os seus controles, enquanto que as organizações japonesas são mais enxutas e favorecem a informalidade, a confiança, a sutileza e a intimidade.
Assim, quando se fala em transferir experiências japonesas para organizações brasileiras, é vital ter em mente essas diferenças culturais. Se a tradicional cultura de nossas organizações não se prestar a isto, será preciso recriá-la, desenvolvendo na empresa um clima de maior confiança e solidariedade. E para fazê-lo, insistimos, temos de começar pelos indivíduos, levando-os a tomar consciência de seu próprio estilo de atuação, aprimorando-o. A partir daí, é possível desenvolver um verdadeiro trabalho de equipe e consolidar uma nova cultura organizacional. Um trabalho “de dentro para fora”! Uma flor nunca desabrocha de fora para dentro.
Procurar atalhos, sem trabalhar as pessoas, é pura perda de tempo e dinheiro. Enfoques do tipo “Se formos nos preocupar com o comportamento das pessoas, não implantaremos a qualidade total em nossos serviços/produtos” são pérolas cartesianas e não fazem parte da ética do caráter. Nesse campo, as coisas não acontecem por “combustão espontânea”. Para desenvolver uma cultura organizacional sadia, temos de começar pelos indivíduos, trazendo à luz aquele nosso potencial inaproveitado. Dificilmente programas “goela abaixo”, impostos “de fora para dentro”, serão bem sucedidos. Terão algum efeito enquanto durarem. Uma vez retirada a pressão, são como as molas: voltam à posição original. Sem envolvimento das pessoas, não haverá uma mudança organizacional efetiva.